Museu de Joalharia Contemporânea - Alberto Gordillo ou o lugar perfeito em Moura para acolher uma oficina sobre recolha e conservação de sementes tradicionais, que decorreu também ela sob o signo da...perfeição. Não só pela qualidade das instalações (a propósito, os nossos agradecimentos à Câmara Municipal de Moura pela sua cedência), mas também por todo o simbolismo associado, se pensarmos que as sementes são igualmente jóias, jóias da coroa universais que precisam de protecção permanente, tal como as jóias de um museu, pois delas dependem afinal a nossa e as outras formas de vida, a começar pela das próprias plantas.
Este foi mais ou menos o mote de uma conversa muito interessante (6 horas!) que decorreu na passada sexta-feira, com muitas demonstrações práticas pelo meio a ilustrar os momentos principais, lançada e conduzida de modo admirável pelo José Mariano, da Associação Colher para Semear (http://pt-br.facebook.com/pages/Colher-para-Semear/113164618765566), e que percorreu temas como: Reconhecimento de variedades tradicionais/rústicas: como descobri-las e identificá-las; Processos de recolha de sementes; Reprodução e conservação das sementes; Circuitos de partilha e necessidades de aumento de áreas de cultura; Perigos da perda da biodiversidade agrícola; Protecção das espécies vegetais agrícolas e segurança alimentar.
Em síntese, pretendeu-se chamar a atenção para um conjunto de questões centradas na constatação do seguinte facto: a extinção que se processa em todo o mundo e sob os nossos olhos a um ritmo alucinante e se traduz na perda irreparável de centenas e centenas de sementes de variedades únicas, situação que compromete não apenas a biodiversidade genética mas também a biodiversidade do abastecimento alimentar. Com efeito, cada um de nós que se abastece em supermercados e noutros espaços comerciais tem que ter consciência de que a quantidade alimentar que inunda as prateleiras e satisfaz aparentemente as necessidades imediatas dos consumidores tem o seu reverso em produtos, falando apenas de legumes e frutos, que se reduzem a meia dúzia de variedades modernas apuradas pela tecnologia, de aspecto uniforme e "são", com possibilidade de se conservarem, ainda que artificialmente, ao longo do ano, com sabores e aromas muito diferentes dos encontrados nas variedades tradicionais e provenientes, boa parte deles, de explorações que distam milhares de quilómetros dos centros de consumo, com os problemas ambientais conhecidos daí resultantes. Esta estratégia, levada a cabo pelas multinacionais do sector agro-alimentar, que conduziu ao triunfo da agricultura industrializada em praticamente todo o mundo, tem subjacente a ideia peregrina, para não dizer perigosa, de que para fazer aumentar a quantidade de alimentos disponíveis e evitar crises de escassez alimentar há que apostar num punhado de sementes resistentes e de alto rendimento, sacrificando com isso a diversidade representada pelas variedades tradicionais, que têm uma longa história para contar, ou seja, com provas dadas no que se refere à sua adaptação natural, ao longo de milénios, a condições ambientais diversas. Como seria de calcular, as experiências levadas a cabo em certas regiões de África tornaram evidentes os pés de barro em que assenta esta visão produtivista. Verificou-se aí que as sementes formatadas pela engenharia genética, quando submetidas a climas e ambientes estranhos e ao contrário do que sucede com as sementes tradicionais que registam maior imunidade fruto de uma longa evolução natural, tornaram-se com o tempo mais vulneráveis a doenças, o que implicou a introdução de uma cada vez maior quantidade de fertilizantes químicos e pesticidas tóxicos, acarretando problemas ambientais acrescidos e ajudando ao endividamento dos pequenos agricultores. Ao mesmo tempo, foram estes agricultores que ficaram, de um momento para o outro, dependentes do fornecimento das sementes importadas, já que são programadas de forma a que as plantas descendentes não possam gerar sementes produtivas. Resta dizer que as sementes tradicionais ou se perderam progressivamente, por deixarem de ir à terra, ou acabaram nas mãos das grandes multinacionais que entretanto as patentearam como se de um património seu se tratasse.
E como se não bastasse, prepara-se agora a União Europeia, invocando a necessidade de rastrear o percurso dos alimentos e a segurança alimentar, para estabelecer uma directiva "legal" no sentido de impedir que as pessoas que sempre semearam e recolheram, assegurando a sua soberania alimentar, possam continuar a agir dessa maneira, isto é, a poder utilizar as sementes tradicionais, passadas de geração em geração, e que dadas as suas características constituem um recurso vital sempre que se coloquem ameaças de novas pragas ou mudanças climáticas. Ao contrário do que manda fazer a União Europeia, o importante é saber dispersar o risco para garantir o mais possível de imunidade, o que só se consegue apostando na conservação de sementes de múltiplas variedades, que por sua vez representam um número diversificado de culturas, ao longo de muitas estações e em variados lugares da Terra.
É por estes e outros atropelos que, mais do que nunca, se justifica a criação de associações por esse mundo fora com os propósitos da Colher para Semear, ou seja: formar e incentivar os agricultores para que procedam à recolha anual e troca das suas próprias sementes; fomentar o uso de variedades tradicionais em práticas de agricultura biológica, uma vez que estão melhor adaptadas a cada contexto local, diminuindo os problemas fitossanitários; reverter a actual situação de perda contínua de biodiversidade genética agrícola, fomentando a recolha, cultivo e catalogação das variedades tradicionais ainda existentes; reintroduzir o uso de vegetais que caíram em desuso, promovendo uma maior diversidade alimentar e uma culinária mais completa , variada e atractiva.
Para a Colher para Semear não basta guardar as sementes em Bancos de Sementes, como acontece em alguns sítios no mundo, incluindo em Portugal, para assegurar a diversidade genética e o abastecimento alimentar no futuro. É que as sementes só na terra conseguem evoluir, isto é, só germinando ciclicamente aprendem a lidar com os desafios constantes colocados pelo ambiente externo. Fechadas num arquivo ou depósito, estas jóias deixam de aprender, permanecendo num estádio de desenvolvimento que as tornará mais expostas e impreparadas se tiverem de enfrentar, no futuro, condições ambientais externas, certamente bem diferentes das actuais. Para se proteger esta memória acumulada que transportam as sementes tradicionais e para não se perder o seu rasto no mundo, há que descobrir, por exemplo, por esse Portugal fora, quem ainda as tenha e cultive, tornando assim possível a sua partilha e disseminação por mais hortas e quintais, ou seja, aumentando exponencialmente as possibilidades de êxito desta missão, que poderia muito bem ter o seguinte lema:Temos todos que lançar a semente à terra!
O local da oficina: Museu de Joalharia Contemporânea - Alberto Gordillo
Vem a propósito: uma couve à porta do museu!
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