A RUA DAS HORTAS EXISTE MESMO. FICA SITUADA EM MOURA, NO BAIRRO DO SETE E MEIO.
ESTE BLOGUE É O DIÁRIO DE BORDO DA HORTA COMUNITÁRIA AÍ EXISTENTE. INICIALMENTE ASSOCIADA A UM PROJECTO DE FORMAÇÃO PARA PÚBLICOS DESFAVORECIDOS, COMO ESPAÇO DA COMPONENTE TECNOLÓGICA DO CURSO, A HORTA ENCONTRA-SE AGORA NUMA SEGUNDA FASE. NESTE MOMENTO, ACOLHE ALGUNS DOS FORMANDOS QUE MOSTRARAM VONTADE EM PROSSEGUIR A ACTIVIDADE PARA A QUAL FORAM CAPACITADOS E ESTÁ ABERTA A OUTROS INTERESSADOS EM ACEDER AOS RESTANTES TALHÕES DEIXADOS LIVRES. UNS E OUTROS SÃO RESPONSÁVEIS PELA GESTÃO COMUNITÁRIA DA HORTA, MEDIANTE A OBSERVÂNCIA DE UM REGULAMENTO E CONTRATO DE UTILIZAÇÃO. ESTE PROJECTO CONTA COM A ORGANIZAÇÃO DA ADCMOURA EM PARCERIA COM A CÂMARA MUNICIPAL DE MOURA, NÚCLEO LOCAL DE INSERÇÃO DA SEGURANÇA SOCIAL, EQUIPA TÉCNICA DE ACOMPANHAMENTO FAMILIAR PROTOCOLO DE MOURA E CENTRO DE EMPREGO DE MOURA. TAL COMO ATÉ AQUI, ESTE É TAMBÉM O ESPAÇO PARA FALAR DE REGENERAÇÃO URBANA, AGRICULTURA BIOLÓGICA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E SOLIDÁRIO.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

A horta contada pelas crianças

-É segredo ou podemos saber o que mais gostaram da horta?
-Gostámos de tudo!
-A sério? 
-Sim. Gostámos do tanque e de ver as carpas, os barbos e os pimpões. A princípio pensávamos que era a brincar, mas depois vimos que eram peixinhos a sério. Gostámos também de ouvir as rãs a coaxarem numa poça ao pé do tanque.
-Apesar de estarem escondidas nos juncos. 
-Sim. E gostámos de saber que há plantas que têm nomes de pessoas.
-Se calhar são as pessoas que têm nome de plantas. Até com o primeiro nome e o apelido, tal como a...
-...Lúcia-lima.
-Planta de que se faz um chá maravilhoso. Sabiam?
-E gostámos muito do poema que fala sobre ela.
-Vamos relê-lo?
-Sim.
o tem boca nem pulmões.
Que não tenha não admira.
porque é pelas folhas,
que a lúcia-lima respira.


Não tem boca nem pulmões,

nem veias, a lúcia-lima!
Mas tem seiva, quanto basta,
a subir pelo caule acima.


E se porventura a ferirem,

acaba por cair no chão.
A não ser que alguém lhe dê,
logo uma transfusão.»

-Gostámos também de conhecer a hortelã do Sporting. 
-Do Sporting ou do Benfica?
-Do Sporting. Porque as suas folhas são verdes e brancas, como as camisolas do Sporting. 
-Os meninos que são do Benfica é que queriam ver uma hortelã encarnada, mas parece que não existe... Já agora, gostaram de a retirar do vaso e plantar no jardim da horta?
-Sim, foi muito giro. Cavámos todos um bocadinho e fizemos um buraco onde ela coubesse. No fim, regámos com o regador.
-E depois?
-Depois gostámos de conhecer a planta mais cheirosa da horta.
-Que se chama?
-Tomilho bela-luz. 
-E lembram-se do outro nome por que era conhecida antigamente?
-Sal purinho.
-E porquê sal purinho? Está-se mesmo a ver...
-Porque é um pouco salgada.
-Por isso, quando não tinham sal, as pessoas usavam esta planta para temperar os alimentos.  
-E porque faz melhor à saúde.
-Bem observado. E agora, esta planta, o que sabem sobre ela?
-Chama-se salva e serve para fazer pasta de dentes. Até experimentámos trincar uma folha para sentir o sabor refrescante.
-Já acabaram?
-Não. Ainda falta falar dos talhões dos senhores e das senhoras que vêm cavar a horta. 
-E o que produzem eles e elas?
-Muita coisa. Alfaces, tomates, ervilhas, favas, cenouras, feijão e outras coisas. Assim não precisam de ir ao supermercado gastar dinheiro.
-Para além disso, são legumes biológicos. O que quer dizer biológicos?
-Que não levam pózinhos que fazem mal à barriga das pessoas.
-Das pessoas, dos animais e da natureza em geral. Muito bem. Agora temos aqui estes ramos de plantas aromáticas para vocês levarem para a vossa sala. Mas antes de partirem, vamos ler um poema que fala de uma destas plantas. Vamos ver se vocês descobrem qual é. Diz assim:

«Fecha os olhos bem fechados,
e diz-me a que é que cheira.
Cheira a rosa, cheira a nardo,
ou a flor de laranjeira?



Nem a rosa, nem a nardo,

nem a cravos, nem a cravinas
me cheira este poema.
O que me chega às narinas
é o cheiro a...»

Então? Digam alto! Alfa...
-...zema.
-Certo!

Peixinhos da horta


A hortelã do Sporting

Os senhores que cuidam da horta

A salva para fazer pasta de dentes


Feijão rasteiro e feijão "trapezista"


Cheira a alfazema


A horta comunitária foi visitada no passado mês de Maio por crianças e educadoras do Centro Infantil Nossa Senhora do Carmo. Este "trabalho de campo", como lhe chamaram, constituiu uma das actividades pedagógicas do projecto Semeando ciência...bem no interior do Alentejo, desenvolvido durante o ano lectivo 2013/2014 nesta instituição mourense de ensino pré-escolar. Projecto integrado e multidisciplinar que se centrou na criação de uma horta escolar (com rega gota-a-gota accionada por painel solar) e que proporcionou «inter-relações e pontes de aprendizagem entre recursos naturais (actividades em torno da motivação, preparação e cultivo de legumes na horta), ciência (experiências e pesquisas realizadas pelas crianças no âmbito da vida vegetal e animal da horta e da energia do sol) e tecnologia (actividades em torno do painel solar e do aproveitamento do sol como recurso natural)». Candidatado ao Prémio Fundação Ilídio Pinho - Ciência na Escola, este projecto viria a ser distinguido com uma menção honrosa. Ainda que com o contributo de muitas entidades, este sucesso deve-se acima de tudo a uma equipa de directores e educadores com visão de futuro, que conseguiu envolver e mobilizar as crianças, as suas famílias, parceiros institucionais, como a ADCMoura, e comunidade em geral nesta relevante acção de promoção da cultura científica na escola, a partir da rentabilização dos recursos naturais locais, que vai certamente continuar a dar frutos nos próximos anos ou não se chamasse Semeando ciência. Muitos parabéns!  

Os poemas são de Jorge Sousa Braga, Herbário, Assírio & Alvim, 2ª edição, 2002.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Hortas, compostagem e Goethe

Cascas de tubérculos e frutos, restos de hortaliça e legumes, borras de café e saquetas de chá, cascas de ovos e folhas secas de arbustos contam-se entre os resíduos orgânicos depositados no nosso ponto de recolha doméstico, à espera de serem compostados. Representam diariamente qualquer coisa como meio quilo e metade do lixo indiferenciado produzido por uma família de três elementos. Ao fim de uma semana a seleccionar e armazenar, são cerca de quatro quilos de resíduos domésticos que desviamos, com vantagens diversas, dos sobrelotados aterros sanitários da região para os compostores instalados na horta, onde são transformados e de seguida incorporados, sob a forma de adubo gourmet, no ciclo produtivo.
Graças à horta e à compostagem, o que antes era lixo ganha agora estatuto de matéria-prima. Chama-se a isto saber utilizar os recursos com eficiência e sensatez, partindo do princípio de que tudo foi feito, a montante, para reduzir o seu desperdício. E nós garantimos que sim.
Vale a pena determo-nos nesta combinação frutuosa horta-compostagem: evita o uso de fertilizantes químicos e outros insumos não-naturais, contribui para a redução do custo de gestão dos resíduos domésticos e gera impactos positivos no meio ambiente, na nossa saúde e na nossa carteira.
Além disso, com estes simples gestos, estamos a retomar o curso duma longa história de que nos afastámos, enquanto comunidade, nas últimas décadas, a qual remonta às origens da agricultura neste território e se sedimenta num valioso património de práticas sustentáveis, de que o aproveitamento de estrumes de origem animal e de desperdícios das cozinhas e colheitas sempre fez parte.
Em conclusão, produção local de alimentos e tratamento local de resíduos foram sempre funções inerentes às hortas tradicionais, as de Moura, em particular, e as do mundo mediterrânico, em geral, mas que agora, em tempos de transição, podem e devem ser consideradas com renovado propósito.



E por falar em (a) propósito, reza assim o trecho seguinte, escrito em Nápoles no dia 28 de Maio de 1787: 

«As redondezas de Nápoles são uma horta pegada, e dá gosto ver a quantidade de legumes que todos os dias são trazidos para a cidade, e como as pessoas se ocupam a levar de volta para os campos os restos, deitados fora pelos cozinheiros, para acelerar o ciclo da vegetação. Com um tal consumo de legumes, os talos e as folhas de couve-flor, brócolos, alcachofras, couves, alface, alho, constituem uma grande parte do lixo napolitano; e eles procuram fazer o que podem por isso. O burro traz no lombo dois grandes cestos flexíveis que não se limitam a encher, completam-nos ainda com um monte em cada um, feito de um jeito muito especial. Não há horta que floresça sem um burro destes. Um criado, um rapaz, por vezes o próprio patrão, vêm todos os dias, às vezes mais que uma vez, à cidade, que é para eles uma mina a qualquer hora que cheguem. É fácil de imaginar como estes homens andam atrás do estrume de cavalos e mulas. Não saem das ruas quando cai a noite, e os ricos, que depois da meia-noite saem da ópera, não pensam provavelmente que antes do nascer do dia um homem diligente terá recolhido os vestígios dos seus cavalos. Asseguram-me que algumas destas pessoas se juntam, compram um burro e arrendam a um proprietário um pedaço de terra batida, e, com o seu trabalho e o clima favorável, em que o ciclo da vegetação nunca se interrompe, em pouco tempo conseguem alargar significativamente o seu negócio.»  (Johann Wolfgang von Goethe, Viagem a Itália (Italienische Reise, 1786-1788), tradução, prefácio e notas de João Barrento, Relógio d'Água Editores, 2001, pp.406-407.

Como escreveu Orlando Ribeiro, a obra epistolar/diarística Viagem a Itália, do romântico Johann Goethe (sim, esse mesmo, o autor de Fausto e Werther), registando as suas deambulações, entre 1786 e 1788, através de uma Itália então dividida em reinos, «é o primeiro encontro da cultura germânica, na época da sua eclosão, com o ambiente e a tradição do Mediterrâneo». Encontro marcado por um permanente deslumbramento, quer diante do mundo clássico da história e da arte, quer perante o mundo novo da natureza e do património rural mediterrânicos, com uma atenção particular dada às paisagens e aos aspectos pitorescos das práticas agrícolas. Apesar dos anos passados, continua a ser uma obra relevante da vasta bibliografia acerca do Mediterrâneo, sobretudo para o conhecimento da idiossincrasia transalpina.