A RUA DAS HORTAS EXISTE MESMO. FICA SITUADA EM MOURA, NO BAIRRO DO SETE E MEIO.
ESTE BLOGUE É O DIÁRIO DE BORDO DA HORTA COMUNITÁRIA AÍ EXISTENTE. INICIALMENTE ASSOCIADA A UM PROJECTO DE FORMAÇÃO PARA PÚBLICOS DESFAVORECIDOS, COMO ESPAÇO DA COMPONENTE TECNOLÓGICA DO CURSO, A HORTA ENCONTRA-SE AGORA NUMA SEGUNDA FASE. NESTE MOMENTO, ACOLHE ALGUNS DOS FORMANDOS QUE MOSTRARAM VONTADE EM PROSSEGUIR A ACTIVIDADE PARA A QUAL FORAM CAPACITADOS E ESTÁ ABERTA A OUTROS INTERESSADOS EM ACEDER AOS RESTANTES TALHÕES DEIXADOS LIVRES. UNS E OUTROS SÃO RESPONSÁVEIS PELA GESTÃO COMUNITÁRIA DA HORTA, MEDIANTE A OBSERVÂNCIA DE UM REGULAMENTO E CONTRATO DE UTILIZAÇÃO. ESTE PROJECTO CONTA COM A ORGANIZAÇÃO DA ADCMOURA EM PARCERIA COM A CÂMARA MUNICIPAL DE MOURA, NÚCLEO LOCAL DE INSERÇÃO DA SEGURANÇA SOCIAL, EQUIPA TÉCNICA DE ACOMPANHAMENTO FAMILIAR PROTOCOLO DE MOURA E CENTRO DE EMPREGO DE MOURA. TAL COMO ATÉ AQUI, ESTE É TAMBÉM O ESPAÇO PARA FALAR DE REGENERAÇÃO URBANA, AGRICULTURA BIOLÓGICA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E SOLIDÁRIO.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Rega gota-a-gota

Na semana da Web Summit de Lisboa e para assinalar a entrada em vigor do acordo climático de Paris, o ecossistema criativo da Horta Comunitária de Moura dá a conhecer ao mundo a sua mais recente inovação: a introdução do sistema de irrigação gota-a-gota em todos os talhões de cultivo. A proposta de valor traduz-se em: maior eficiência do uso da água nas actividades da Horta e redução de escorrimentos e de perda de nutrientes do solo, fornecendo às plantas, com precisão, a água de que necessitam. Para além disso, evitam-se longos tempos à espera de vez de regar com uma das duas mangueiras de serviço, como sucedia até aqui. A próxima inovação poderá passar, quem sabe, pela instalação de temporizadores para rega programada e automatizada. Mas isso fica para outro elevator pitch.   
A propósito de distribuição / partilha da água para rega e das formas de direito consuetudinário que lhe andam associadas, atente-se no complexo sistema utilizado antigamente na freguesia de Macieira (Felgueiras):
«Há aí uma água que tem a sua nascente no campo de Grusmão, situado no lugar de Bôro, freguesia de Pinheiro, a qual se denomina água da Levada de Borbela, ou da Maçorra. Esta água, desde o S. João (24 de Junho) até à Senhora da Lapa (15 de Agosto) tem a divisão que passamos a indicar.
Cada dia divide-se em seis partes, a saber: galo, sol-nado, chouzeiro, sesta, tarde e sol-posto; e cada parte constitui o período de tempo durante o qual cada interessado pode utilizar a água.
O galo começa à meia-noite e acaba ao apontar do sol no alto do Ladário (monte sobranceiro à vila da Lixa); o sol-nado tem início logo a seguir e dura até aos oito pés de sombra; o chouzeiro principia aos oito pés e termina aos três; a sexta vai dos três pés aos oito; segue-se a tarde, que termina ao pôr-do-sol; o sol-posto é o período imediato, que finda à meia-noite. 
Para marcar os pés de sombra, o camponês procede da seguinte maneira: - depois de se descalçar e descobrir a cabeça, volta-se para o lado oposto ao sol e, marcando com a vista o ponto até onde chega a sombra, começa a medir os pés que separam aquele ponto do lugar onde se encontra. Como se disse, a medição é feita em pés e não em passos. E, assim, vai encostando o calcanhar de um pé ao dedo polegar do outro, até encontrar o limite da sombra previamente fixado. Se a sombra mede oito pés, estará findo o sol nado e começará o chouzeiro. Esta operação tem de ser feita em terreno nivelado. 
meia-noite, não havendo nuvens, é determinada pelo aparecimento de uma estrela sobre o lugar de Aljão, da freguesia de Agilde, quando a mesma está uma vara de medir acima da linha do horizonte, isto nos meses de Junho e Julho, porque em Agosto é meia-noite quando os sete-estrelos tiverem subido igual medida».

Manuel Bragança, Como se divide uma água, in «Douro-Litoral«, 2ª série, VII, Porto, 1947, pp. 11 e 12, citado por Jorge Dias e Fernando Galhano, Aparelhos de Elevar a Água de Rega, Junta da Província do Douro-Litoral, Porto, 1953, pp. 33 e 34.







quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Cebolas de Agosto

Este ano, na última semana de Janeiro, prepararam-se pequenas parcelas da horta para semear cebolas serôdias. Sementeira feita a lanço, à razão de dez gramas de semente por cada metro quadrado de terra, que germinou passadas três semanas, formando retalhos densos e verdes de cebolinho a necessitarem de monda constante.
Em Abril, transplantaram-se os cebolinhos, já com um bom palmo de altura, para caldeiras definitivas. Plantação à linha, com um espaço de cerca de dez centímetros entre rebentos e uma profundidade "quase superficial".
Muitas sachas, mondas e regas depois, eis-nos chegados aqui, a Agosto, o mês da colheita das cebolas valencianas, com os bolbos feitos a despontar da terra. Farta colheita, por sinal, que deu e dará para todos os gaspachos da estação e ainda para prover as despensas dos nossos utilizadores, com que contam para a travessia do resto do ano.   

Foi há quarenta anos. Em Janeiro de 1976, um sociólogo inglês, Robin Jenkins de seu nome, chegava à aldeia de Alto, nas encostas da serra de Monchique, «numa carripana com dezoito anos» para «se familiarizar com a agricultura numa situação revolucionária», ou melhor, quando a «contra-revolução não cessava de progredir desde há dois meses». Acabaria por ficar até Setembro, tempo durante o qual cultivou, com a sua conterrânea Sheila Young, que aí vivia há dois anos, alguns socalcos arrendados. Sobraram-lhe, por isso, tempo e motivos para registar em livro, de forma impressiva, os derradeiros momentos do quotidiano comunitário dos camponeses de Alto ligado à agricultura de subsistência em equilíbrio com a natureza, antes da sua total dissolução motivada, segundo o autor, pela chegada, em 1951, de uma estrada alcatroada. Pretexto para falar de permanências e mudanças, de tensões contraditórias em desenvolvimento, resultantes do confronto entre estes dois mundos: o velho mundo, da economia de auto-suficiência, e o novo mundo, do "exterior", marcado pela «economia capitalista generalizada». Há também um capítulo sobre o «ano agrícola em Alto», ou sobre o ciclo anual do trabalho, em que as cebolas, a par das batatas, têm estatuto de produto imprescindível no regime alimentar e na economia de base autárcica.

«Agosto

A principal tarefa deste mês é a colheita das cebolas. Ao fim de algumas semanas os bolbos aumentam repentinamente, até cada um ficar a tocar o do lado. As folhas começam a amarelecer e pára-se então a rega, deixando-as a secar durante algumas semanas. Em seguida o cebolal é ligeiramente regado para amolecer a terra; no dia seguinte retiram-se as cebolas que se deixam de lado para as raízes secarem e mirrarem. Daí a um semana estão prontas para serem entrançadas em résteas. O melhor é fazer isto de manhã, quando o orvalho ainda está fresco, de modo a que os caules não fiquem demasiado secos e quebradiços. Têm de ter um grau de humidade exacto - se estiverem excessivamente secos partem-se e se estiverem demasiado húmidos as cebolas caem quando os pés secam. Fazem-se as résteas como uma trança, sendo necessários vários dias para todo este processo estar terminado. São então carregadas por burros até ao celeiro onde ficam penduradas nas vigas. Em Agosto de 1976 as cebolas só custavam 50 escudos a arroba, mas no fim do ano o seu preço aumentou para 120 escudos. Em Abril é frequente atingirem os 200 escudos. No entanto, não há grande vantagem em esperar muito tempo para as vender, pois vão secando lentamente e perdem peso - cerca de 30 % em seis meses. Umas apodrecem; outras grelam e todo o peso vai para os rebentos verdes. No fim da Primavera de 1976, o Elói e a Eulália esperavam fazer muito dinheiro com a venda das cebolas do ano anterior. Tinham-nas armazenado muito bem, nas vigas da forja onde nunca havia humidade e fazia calor. Mas esperaram demasiado e em Maio as primeiras cebolas do Algarve já se encontravam à venda no mercado. Acabaram por conseguir 45 escudos por arroba, tendo visto os preços aumentar de 70 escudos, em Agosto do ano anterior, para 130 escudos em Março e depois descerem de novo.»

Robin Jenkins, Morte de uma aldeia portuguesa (originalmente The Road to Alto, 1979), Editorial Querco, Lisboa, 1983, pp. 55-56.











segunda-feira, 11 de julho de 2016

O tanque de rega

O ritual repete-se. Manda o guia de utilização da horta que, em Julho, de três em três anos, se esvazie e limpe o tanque de rega. Ontem, entre as 5.30 e as 10.30, com um ano de atraso, cumpriram a tarefa o Zé Maria, o Jorge Caraça, o António Machado, o Aquilino (júnior) e o autor do blogue. Armados de espátulas, enxadas, pás e baldes, sem esquecer os camaroeiros! para facilitar a pescaria dos dezoito barbos e carpas que aguardaram no exterior do tanque, em bidões de plástico, a renovação da água. Cinco horas muito bem passadas em animado convívio, com anedotas bem temperadas, experiências de guerra vividas na primeira pessoa nas províncias ultramarinas de Niassa e Cabo Delgado e memórias dos tempos em que o tanque servia para lavar a roupa, refrescar os corpos nos dias quentes de Verão e acoitar pares de namorados cheios de sede. Em 2019, o tanque espera-nos de novo.  

«O tanque, ao longe, no meio dos salgueiros, parecia de prata; cheirava a fresco. O peito dilatava-se-lhe de satisfação. Deitava-se ao comprido sobre o rebordo de pedras, reclinava a cabecita morena sobre o braço estendido; a mão, pendida, num gesto quase sensual, afagava a água, que se abria tépida e a envolvia de doçura. E se ele descalçasse as botas e arregaçasse os calções? (...) A água fulge chapeada de claridade. Dum salto, atira-se à água. Os olhos fecham-se-lhe de voluptuosidade. Há na curva das fartas pestanas escuras descidas sobre os olhos qualquer coisa de sensualidade dum corpo que mãos suaves de mulher acariciassem...A água faz um gluglu indolente e melodioso e vai espraiar-se em pequeninas vagas no rebordo de pedra. Um melro, quase azul à força de ser negro, espreita malicioso o camarada, por entre os ramos dos salgueiros, dum verde mais intenso, mais cru na tarde que sobe resplandecente. E o pequeno nada, chapinha, mergulha, estira-se, patinha como um deus das águas, ébrio de vida moça e livre, sob a carícia do sol, que lhe morde a carne morena coberta de pequeninas gotas irisadas.»


Florbela Espanca, "O inventor" in As máscaras do destino, 5ª edição, Livraria Bertrand, 1989.






















segunda-feira, 20 de junho de 2016

Romãzeiras em flor


Num tempo de Primavera-quase-Verão (o solstício de Verão começa daqui a umas horas, mais precisamente quando forem 22.34), a horta exibe sinais que evocam o Outono. Numa alusão às romãzeiras em flor que, em Outubro, nos brindarão com o fulgor dos seus frutos.

Da Ilha dos Amores, das ninfas e dos lusos argonautas, do clássico-moderno Luís de Camões, às ilhas dos desamores da lagoa da Gafeira, de Palma Bravo e Maria das Mercês, do moderno-clássico José Cardoso Pires, três passagens com as romãzeiras em primeiro plano.

«Abre a romã, mostrando a rubicunda
Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes;
Entre os braços do ulmeiro está a jucunda
Vide, cuns cachos roxos e outros verdes;
E vós, se na vossa árvore fecunda,
Pêras piramidais, viver quiserdes,
Entregai-vos ao dano que cos bicos
Em vós fazem os pássaros inicos.»

Luís de Camões, Os Lusíadas, canto IX, LIX.

«A romãzeira está brava, assaltada por legiões de formigas. Apesar disso, cabe-lhe a homenagem, porque, nesta época do ano e nesta desolada terra, é a única exclamação da Natureza. Árvore bravia, de sombra rendilhada, que já foi sumo e que hoje fica na flor: à volta não vejo senão pedras e formigas, restos de comida e cães à espera dos donos. E no meio, ela. Ela, enchendo a página, com um herbário escolar, com a folhagem tatuada de injúrias (do Velho), caprichos de interrogações nas flores, pontinhos a formigar. É um cântico de vermelho exposto ao sol outonal, esta árvore, e sustenta nos braços cor de cobre toda uma abóbada de chagas em alegria. Tem, para finalizar, a inestimável utilidade da beleza - coisa importantíssima.» 

«Estou nas traseiras da pensão e este é o quintal da romãzeira selvagem com os exércitos de formigas que a cobrem e com toda a poesia das suas chagas em flor.»

José Cardoso Pires, O Delfim, 2ª edição booket, Publicações Dom Quixote, 2008, pp. 106, 161.







terça-feira, 24 de maio de 2016

A Escola do Paraíso

Qual laboratório de experiências e aprendizagens, a Horta Comunitária recebeu, há dias, em duas ocasiões, a visita de sessenta e quatro crianças do Centro Infantil Nossa Senhora do Carmo, entusiasmadas por participarem numa actividade pedagógica diferente, ao ar livre, que decorreu sob o signo das Plantas Aromáticas e Medicinais. Curiosas, traziam muitas perguntas sobre os segredos que se escondem ao longo da álea aromática, um jardim florido por estes dias, onde coabitam cerca de trinta espécies vegetais, entre tomilhos, mentas, salvas, alfazemas, alecrins... Referidas algumas das utilizações alimentares e medicinais de cada uma das plantas, passou-se a outras vantagens menos conhecidas, como, por exemplo, o seu contributo para evitar a perda de solo no talude da horta (controlo da erosão), para atrair insectos auxiliares na polinização e no controlo de pragas ou ainda para fixar outros animais amigos do hortelão, como batráquios, répteis, pequenos mamíferos e aves.
Os pequenos investigadores puderam constatar tudo isto mexendo na terra, abeirando-se das plantas, inalando os seus aromas, apreendendo as suas texturas, apreciando cada detalhe das suas folhas e flores com a ajuda de lupas, descobrindo ninhos de insectos e de aves suspensos nas ramarias ou surpreendendo lagartixas e sapos entre a vegetação mais rasteira. 
No final, depois de espreitarem o tanque com peixes verdadeiros, todos estavam de acordo neste ponto: dá gosto aprender assim!











«Sim, é tempo: abram agora a porta envidraçada e entremos no Jardim. (Mas cautela, não se desfaça em pó.) O Jardim é imenso. Tem árvores descuidadas, vertiginosas, com ramarias quebradas, pendentes, canteiros silvestres, ervas e flores, tudo num abandono maravilhoso, e umas ruazinhas perdidas em curvas, com o cimento gretado e desnivelado, algumas empedradas ou de terra batida. Há uma cisterna - cuidado!, é profunda e enorme: por ela pode-se chegar talvez ao outro-lado-do-mundo. Tem um tampo redondo de tábuas, é como um terraço onde se pode bater com os pés (o que a gente faz sempre que está sozinho), com um postigo quadrado por onde não há o perigo de se cair lá dentro. Por cima, um arco de ferro enferrujado, com roldana e balde. Quando se entreabre o postigo - e é frequente não se poder resistir a trepar sub-repticiamente e espreitar - vê-se lá em baixo o negrume oleoso, onde se espelha um quadrado de céu com uma cabeça: a nossa. Então faz-se «Buh!» - e a cisterna acorda, responde com um ribombo cavernoso e húmido, que dá vontade ao mesmo tempo de fugir e de entrar. Depressa, depressa, ponham a tampa e desçam, que lá vem o marido-da-senhora-mestra!
Correm todos para o baloiço: é uma prancha grossa e polida do uso, suspensa de duas cordas que vêm duma altura desmedida, dentre as ramarias, do infinito, não se sabe donde. (...) 
É sentado nesse balouço que ele gosta de escutar as vozes e olhar as árvores, às vezes de cabeça à banda, ou virada para baixo, para trás, num abandono tranquilo e solitário, a ver um mundo diferente do mundo real.»

José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso, Publicações Dom Quixote (1ª edição de bolso), 2003, pp. 48-50.