A RUA DAS HORTAS EXISTE MESMO. FICA SITUADA EM MOURA, NO BAIRRO DO SETE E MEIO.
ESTE BLOGUE É O DIÁRIO DE BORDO DA HORTA COMUNITÁRIA AÍ EXISTENTE. INICIALMENTE ASSOCIADA A UM PROJECTO DE FORMAÇÃO PARA PÚBLICOS DESFAVORECIDOS, COMO ESPAÇO DA COMPONENTE TECNOLÓGICA DO CURSO, A HORTA ENCONTRA-SE AGORA NUMA SEGUNDA FASE. NESTE MOMENTO, ACOLHE ALGUNS DOS FORMANDOS QUE MOSTRARAM VONTADE EM PROSSEGUIR A ACTIVIDADE PARA A QUAL FORAM CAPACITADOS E ESTÁ ABERTA A OUTROS INTERESSADOS EM ACEDER AOS RESTANTES TALHÕES DEIXADOS LIVRES. UNS E OUTROS SÃO RESPONSÁVEIS PELA GESTÃO COMUNITÁRIA DA HORTA, MEDIANTE A OBSERVÂNCIA DE UM REGULAMENTO E CONTRATO DE UTILIZAÇÃO. ESTE PROJECTO CONTA COM A ORGANIZAÇÃO DA ADCMOURA EM PARCERIA COM A CÂMARA MUNICIPAL DE MOURA, NÚCLEO LOCAL DE INSERÇÃO DA SEGURANÇA SOCIAL, EQUIPA TÉCNICA DE ACOMPANHAMENTO FAMILIAR PROTOCOLO DE MOURA E CENTRO DE EMPREGO DE MOURA. TAL COMO ATÉ AQUI, ESTE É TAMBÉM O ESPAÇO PARA FALAR DE REGENERAÇÃO URBANA, AGRICULTURA BIOLÓGICA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E SOLIDÁRIO.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

O regadio e a horta mediterrânica

Ao lermos a notícia, veio-nos à memória a visita que fizemos este ano, em Abril, à Horta Comunitária do bairro de Benimaclet, na cidade de Valência, e que as fotografias testemunham. 
A FAO acaba de inscrever (27.11.2019) o Regadio histórico da Horta de Valência na lista dos Sistemas Importantes do Património Agrícola Mundial (Globally Important Agricultural Heritage Systems). Com esta decisão, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura vem reconhecer o legado cultural, ecológico e agrícola desta complexa infraestrutura hídrica desenvolvida durante o período islâmico, se bem que as origens do regadio nesta como noutras regiões do Mediterrâneo sejam certamente mais antigas. 
Ao mesmo tempo que ajudou a estruturar, ao longo de mais de mil anos, um território singular em que se combinam biodiversidade agrícola, ecossistemas resilientes e um valioso património cultural, continua a garantir à comunidade valenciana, nos dias de hoje, a produção de alimentos frescos e de qualidade através de seis mil explorações agrícolas familiares, incluindo dez de pesca, que beneficiam da sua rede de acéquias e canais de irrigação. 
Além disso, este sistema ancestral constitui uma fonte de inspiração para inovações sociais e tecnologias agrícolas actuais e futuras, num horizonte marcado pelos desafios de adaptação às alterações climáticas e de gestão eficiente dos recursos hídricos e do solo e pelo imperativo do desenvolvimento rural sustentável, da soberania alimentar e da produção local, amiga do ambiente. O próprio sistema de gestão do regadio é único, havendo até um Tribunal de Águas, considerado a mais antiga instituição jurídica da Europa, que remonta aos tempos do califado de Córdova, para dirimir disputas sobre o uso da água. 
Em certa medida, esta decisão acaba por chamar a atenção da comunidade para a necessidade de se preservarem, da expansão urbana desenfreada e de práticas agrícolas inadequadas, alguns dos símbolos mais representativos da civilização agrária mediterrânica associados ao regadio e às hortas, que conferem, a par das áreas de sequeiro dominantes, a originalidade da paisagem agrária de que nos fala Orlando Ribeiro, no seu Mediterrâneo - Ambiente e Tradição: «Em comparação com as regiões europeias confinantes, a paisagem agrária mediterrânea distingue-se pela raridade dos bosques tanto como pela abundância das árvores, que ora formam plantações estremes ora se vêem associadas aos campos, pela complicação do desenho do cadastro e certa indecisão nos limites dos incultos e por uma oposição, desenhada com o maior vigor, entre culturas sem ou com adução artificial de água. Sequeiro (secano, em espanhol) e regadio não são apenas duas formas de utilização do solo, mas autênticos modos de vida perfeitamente diferenciados no conjunto do ambiente rural.»  

Horta comunitária de Benimaclet (Valência) | fotografia: Filipe Sousa | Abril 2019
Prosseguindo com o geógrafo:

«Há dois tipos de rega: a de abundância e a de carência. No primeiro caso, usa-se a água de que se dispõe  em larga cópia para intensificar certas produções: vimos já que a Europa média conhece, em certos prados de montanha muito generalizados nos Alpes, por exemplo, esta forma de rega. A rega de carência aplica-se, por um lado, a culturas que sem ela nada produziriam e, por outro, utiliza os mais complexos recursos na obtenção e na distribuição da água. Todo o regadio mediterrâneo pertence a este segundo tipo. Ele é (...) não apenas outro estilo de paisagem, mas outro modo de vida no ambiente rural. As huertas espanholas da Andaluzia e do Levante, verdes alfombras pousadas nas paisagens mais adustas da Europa, servirão para exemplificar esta outra face de uma civilização agrária.» (...)


Horta comunitária de Benimaclet (Valência) | fotografia: Filipe Sousa | Abril 2019
«A Espanha árida mediterrânea é, por excelência, o domínio do regadio. O contraste entre a horta e o sequeiro é total; neste, apenas medra o esparto (Stipa tenacissima, uma erva de estepe) que se colhe como matéria-prima de uma característica indústria popular destes lugares secos - a confecção de alpercatas; plantações recentes de opúncias e alguns raros bosques raquíticos de pinheiros de Alepo não mitigam a impressão de deserto que deixa o corredor de montanhas por onde a huerta de Múrcia desenrola as suas cambiantes de verde húmido e macio. Em torno da horta de Valência ainda crescem alfarrobeiras, aqui nada mais do que tufos de erva rala e ressequida. A terra tem um tom entre cinzento-claro e amarelo sujo e nada oculta a ossatura do relevo. (...) Uma linha, que parece traçada à régua, separa os tons fulvos dos tons verdes: é a acéquia ou canal de rega principal, originária de um sangradouro a montante do rio, que não é mais do que um leito de pedras e, de longe em longe, não chega para conter a cheia devastadora. E este contraste é tão impressionante aqui como nas margens do Nilo, espécie de imensa horta ou de alongado oásis ente os alcantis esbranquiçados onde também, com o relevo, começa o deserto.»


Horta comunitária de Benimaclet (Valência) | fotografia: Filipe Sousa | Abril 2019
«Na horta tudo se rega: o cereal e o pasto, as árvores de fruto e a vinha, as hortaliças e saladas, as flores e os bosques de choupo para pasta de papel. A terra adquire um valor extraordinário e exige uma assombrosa concentração de trabalho. A propriedade é dividida, dentro dela a exploração parcelada em minúsculos talhões onde se associam diversas culturas. Aqui triunfa realmente o que os italianos chamam coltura promiscua, aspecto que apenas alguns trechos de sequeiro também revelam, e com esta justaposição ou até sobreposição de culturas (a árvore e as plantas baixas), uma arte minuciosa de construção de canteiros, abertura de regos, alisamentos da terra, sachas, mondas, apanha de produtos, podas, limpezas, autêntica jardinagem que é lícito opor, como no Extremo-Ocidente, aos processos mais largos e expeditos da verdadeira agricultura. Apanha-se uma colheita à tarde, sacha-se, alisa-se e estruma-se de noite para semear na manhã do dia seguinte. O turno de rega vem a qualquer hora e, pela calada da noite, encontra despertos todos os proprietários ou exploradores dos talhões por onde vai passando.» (...)


Horta comunitária de Benimaclet (Valência) | fotografia: Filipe Sousa | Abril 2019
«O povoamento rural disperso acompanha sempre o regadio, mas toda a horta tem também a sua cidade. Algumas parecem a condensação inevitável da população esparsa nos seus arredores, como Múrcia; outras têm a sua vida própria no mundo de relação, como Valência, porto e centro industrial. Um ar de exotismo impressiona em todas elas, onde as marcas muçulmanas são evidentes.» (...)


Horta comunitária de Benimaclet (Valência) | fotografia: Filipe Sousa | Abril 2019
«O regime de utilização das águas é muito diverso. Há hortas onde a água anda ligada à posse ou exploração da terra, outras onde se leiloa ou adjudica pela maior oferta. A água tem assim uma cotação, como qualquer produto, valorizando-se nos anos mais secos, em que se reserva, por essa razão, às culturas de maior rendimento. Há rios que pertencem a várias povoações: a sua utilização obedece a normas minuciosas, cumpridas com o maior rigor, que é do interesse de todos respeitar. (...) Há águas de vária proveniência, umas comuns, outras particulares que que, como tais, são objecto de transacção ou cedência. Mas sempre acompanha o regadio a associação dos seus beneficiários e a disciplina da sua utilização. A acéquia tem a sua administração, os seus zeladores, os seus juízes. As atribuições destes organismos são muito vastas: velam por que se cumpram as normas na distribuição da água, aplicam penas aos transgressores, geralmente multas ou privação de água por certo tempo, cuidam dos trabalhos e consertos exigidos pela instalação de regadio e, nos anos em que a água escasseia, podem privar dela certas culturas para acudir às que, sem rega, estariam em risco de perder-se. O tribunal de águas de Valência, que se reúne todas as quintas-feiras à sombra do pórtico gótico da Sé, é o tipo destas instituições. Constituem-no sete síndicos, eleitos pelos regantes de cada uma das acéquias principais: simples homens do povo que envergam blusa azul ou negra dos huertanos. «O processo é oral, sumaríssimo, público e gratuito», sem qualquer intervenção de advogados, escrivães ou juízes, os denunciantes são chamados por acéquias, as transgressões são logo julgadas e das decisões não há apelo nem agravo. Simplesmente, a jurisdição do tribunal é voluntária, não obrigatória; mas é muito raro que um regante se não sujeite a ela e prefira enredar-se nos longos e onerosos processos da justiça oficial.»


Horta comunitária de Benimaclet (Valência) | fotografia: Filipe Sousa | Abril 2019
«O huertano é, em certa medida, o oposto do camponês, tão progressivo quanto este é rotineiro. A horta é um lugar de ressonância atento ao apelo dos mercados e a todas as novidades da vida rural.»


Horta comunitária de Benimaclet (Valência)
fotografia: Filipe Sousa | Abril 2019
«Sem negar a forte influência árabe que se surpreende através do vocabulário da rega, das plantas que introduziram e das práticas que melhoraram, as raízes do regadio são certamente mais antigas. Algumas cidades de horta eram já importantes na época romana e em todo o litoral levantino da Península Ibérica se sente, desde os primeiros contactos com fenícios e gregos, uma prosperidade comercial que só o regadio podia sustentar. A Tunísia deve à generalidade das práticas de rega o alto nível de civilização que alcançou na Antiguidade e que a irrupção do nomadismo, com a conquista árabe, definitivamente comprometeu. O regime comunitário a que está sujeita com frequência a utilização da água de rega, faz supor uma remota ascendência pré-romana, por ser contrário ao individualismo agrário que o direito romano favorecia. Seja como for, o regadio corresponde a um ideal de vida muçulmano, a acumulação nas cidades e nos arrabaldes, enquanto vastas áreas semidesérticas ficavam abertas à vida nómada e ao seu fundamento pastoril. É lícita a perplexidade perante um problema que está longe de ser elucidado: influência árabe preponderante ou, pelo contrário, aproveitamento, por este povo ao mesmo tempo atraído pela rega e pela estepe, das áreas de Espanha que mais quadravam à sua maneira de viver?! Para o geógrafo, como para o historiador, a horta é um grande assunto de meditação.»


Orlando Ribeiro, Mediterrâneo - Ambiente e Tradição, 2ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987, pp. 77, 101, 102, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113.  

Horta comunitária de Benimaclet (Valência) | fotografia: Filipe Sousa | Abril 2019