A RUA DAS HORTAS EXISTE MESMO. FICA SITUADA EM MOURA, NO BAIRRO DO SETE E MEIO.
ESTE BLOGUE É O DIÁRIO DE BORDO DA HORTA COMUNITÁRIA AÍ EXISTENTE. INICIALMENTE ASSOCIADA A UM PROJECTO DE FORMAÇÃO PARA PÚBLICOS DESFAVORECIDOS, COMO ESPAÇO DA COMPONENTE TECNOLÓGICA DO CURSO, A HORTA ENCONTRA-SE AGORA NUMA SEGUNDA FASE. NESTE MOMENTO, ACOLHE ALGUNS DOS FORMANDOS QUE MOSTRARAM VONTADE EM PROSSEGUIR A ACTIVIDADE PARA A QUAL FORAM CAPACITADOS E ESTÁ ABERTA A OUTROS INTERESSADOS EM ACEDER AOS RESTANTES TALHÕES DEIXADOS LIVRES. UNS E OUTROS SÃO RESPONSÁVEIS PELA GESTÃO COMUNITÁRIA DA HORTA, MEDIANTE A OBSERVÂNCIA DE UM REGULAMENTO E CONTRATO DE UTILIZAÇÃO. ESTE PROJECTO CONTA COM A ORGANIZAÇÃO DA ADCMOURA EM PARCERIA COM A CÂMARA MUNICIPAL DE MOURA, NÚCLEO LOCAL DE INSERÇÃO DA SEGURANÇA SOCIAL, EQUIPA TÉCNICA DE ACOMPANHAMENTO FAMILIAR PROTOCOLO DE MOURA E CENTRO DE EMPREGO DE MOURA. TAL COMO ATÉ AQUI, ESTE É TAMBÉM O ESPAÇO PARA FALAR DE REGENERAÇÃO URBANA, AGRICULTURA BIOLÓGICA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E SOLIDÁRIO.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

A horta, a cidade e o mundo

No último fim-de-semana, a horta mudou-se de alfaias e bagagens do termo para o centro de Moura. Dos vergéis do vale do Brenhas para as deleitosas sombras  do passeio da Praça Sacadura Cabral. Nesta sala de receber da cidade e, por estes dias, do Festival do Peixe do Rio e do Pão, a horta assentou arraiais para espalhar aromas do seu horto botânico e se dar a conhecer. Da bancada da tenda fez-se um alegrete de tomilhos, salvas, mentas, lavandas, ervas-do-caril, ervas-príncipe, ervas-cidreira e outras "herbas de virtude e formosas, odoríferas e esforçadas", que competiram, cada qual com os seus atributos, pela atenção de amigos, conhecidos e forasteiros. Algumas acabaram por rumar a outros pátios e quintais, de muito perto ou de lugares longínquos, levando com elas um pouco do nosso aprazível jardim.    

«(...) Mas no recanto escolhido
Era o jardim que vinha visitar-nos
Enviando seus presentes
Nas perfumadas mãos da brisa.(...)»

Ibn Amar (séc. XI)

«(...) As flores das laranjeiras, limoeiros e cidreiras, que neste lugar há, são as mais odoríferas e esforçadas que tem todo o outro género de plantas.(...)» 

António de Oliveira Cardonega, Descrição da Villa Viçosa 1640-1680. 

«Em Moura, que tem uma bela praça, muito mais sala de receber do que lugar de passagem, o viajante sentiu a primeira aragem do dia.»

José Saramago, Viagem a Portugal, 1990 




quinta-feira, 18 de junho de 2015

A fada verde

Também conhecido por losna, o absinto (artemisia absinthium) não é flor que se cheire. Literalmente. E no entanto foi graças a esse peculiar aroma almiscarado, capaz de manter à distância piolhos, pulgas, moscas, traças, lagartas das couves e até lesmas, que um exemplar desta planta conquistou, no início do ano, um lugar ao sol no nosso jardim de cheiros. Curiosamente, acumula esta qualidade de planta insectífuga com a de planta armadilha ou atractiva para determinadas pragas, como os afídeos da lúcia-lima, sendo por isso um dos novos eleitos dos produtores de plantas aromáticas e medicinais, que o usam em bordaduras ou rodeando as culturas que se pretendem preservar.  
Com este perfil, não admira que seja utilizado ainda como bio-insecticida, através de maceração ou de infusão dos seus caules e folhas, na proporção de um quilo de planta fresca para dez litros de água. Adicionar depois uma parte deste preparado a dez partes de água e pulverizar. Remédio santo.
Resta dizer que esta planta entra na composição da bebida com o mesmo nome, musa inspiradora de escritores, pintores e outros criadores, de Manet e Baudelaire a Rimbaud e Picasso, sem esquecer o nosso Fernando Pessoa. 
Mito ou realidade, devam muito, pouco ou nada a literatura, a pintura e as outras artes aos poderes alucinogénios da planta, uma coisa parece evidente: o tema do absinto foi profusamente glosado ao longo dos últimos três séculos e por isso pretexto para criações como as que se seguem, em que as virtudes da fada verde, como era conhecida a bebida pela sua cor marcante, competem com as do ópio, tabaco e vinho tinto.  Mas a ser verdade que Baudelaire, Pessoa e O'Neill estavam com um grãozinho na asa quando escreveram estes poemas, então é caso para dizer: bendito absinto!


 LE POISON

Le vin sait revêtir le plus sordide bouge
D'un luxe miraculeux,
Et fait surgir plus d'un portique fabuleux
Dans l'or de sa vapeur rouge,
Comme un soleil couchant dans un ciel nébuleux.
L'opium agrandit ce qui n'a pas de bornes,
Allonge l'illimité,
Approfondit le temps, creuse la volupté,
Et de plaisirs noirs et mornes
Remplit l'âme au delà de sa capacité.
Tout cela ne vaut pas le poison qui découle
De tes yeux, de tes yeux verts,
Lacs où mon âme trembe et se voit à l'envers...
Mes songes viennent en foule
Pour se désaltérer à ces gouffres amers.
Tout cela ne vaut pas le terrible prodige
De ta salive qui mord,
Qui plonge dans l'oubli mon âme sans remords,
Et charriant le vertige,
La roule défaillante aux rives de la mort.

Charles Baudelaire, Les fleurs du mal, 1857.


A PASSAGEM DAS HORAS (a José de Almada Negreiros)

(...) Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo... (...)

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), 1916


BILHETE-POSTAL A ALEXANDRE PINHEIRO TORRES

Absinto-me cansado
             na outonalma.
De absinto, no outono,
             encharco a alma...

Muito deve a literatura 
             ao absinto.
Em qualidade, muito mais
             que ao tinto...

Ó Alexandre, manda-me absinto
             na volta do correio,
que eu já sinto, com tanto tinto,
             estancar-se-me o veio...

Alexandre O'Neill, Poemas com endereço, 1962






Este pequeno exemplar de absinto é o mais recente inquilino do nosso jardim de cheiros. Veio de não muito longe, dos viveiros do Monte do Menir, em Monsaraz, oferecido pelo nosso amigo António Cunha. 


Quando crescer ficará como este, plantado pelos amigos Margarida Monteverde e Pedro Courinha, da Herdade do Gamoal.