A fava é um daqueles legumes com o condão de dividir profundamente os "garfos" deste país, só comparável ao extremismo de posições suscitado pelo feijão frade: ou se morre de amores ou se abomina, apenas de ouvir falar. Para estes segundos, sem o gosto devidamente formado ou então professos de uma qualquer seita pitagórica, que defende a abstinência em matéria de consumo de favas, vai o pratinho que se segue inspirado no viçoso faval da nossa horta e na cultura gastronómica dos alentejanos, mais partidários de Epicuro, o tal que vivia de pão, favas e água.
Escolhem-se então as vagens (também chamadas de taludes ou canudos) mais tenras, com os grãos de leite, ou seja, ainda em formação. Descascam-se dois terços da porção escolhida e partem-se as vagens restantes em pedaços sem desalojar os grãos. Num como noutro caso, deve-se, antecipadamente, retirar o fio lateral dos taludes. Junta-se a primeira quantidade de vagens e grãos a um prévio refogado de cebola cortada e alguns alhos picados, com um fio de azeite como gordura. Tempera-se com sal e pimenta, cobre-se de água e deixa-se cozer durante uns dez minutos. Passa-se então o cozinhado com varinha mágica até obter-se um puré aveludado e lustroso, que cheira que consola. Está na altura de deitar os pedaços de vagens sobrantes e deixar cozer por mais uns minutos. Como opção, ficam bem uns ovos escalfados a acompanhar. Antes de servir, aromatizar com hortelã ou coentros.
Encete-se agora uma garrafa de bom vinho tinto e deixemo-nos levar pela inevitabilidade das coisas boas da vida, tal como Jacinto experimentou na sua chegada a Tormes.
"Foi ele (Jacinto) que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado - e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas!...Tentou todavia uma garfada tímida - e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus (Zé Fernandes). Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
-Óptimo!...Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia! (...)
-Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!
O homem óptimo sorria, inteiramente desanuviado:
-Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até Suas Incelências se riam...Mas agora, aqui, o sr. D. jacinto, também vai engordar e enrijar!"
Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras (com correcções de Ramalho Ortigão), pp.143-144.
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