Reunião Tupperware? Showroom de varinhas mágicas? Nem uma coisa nem outra. É o José Mariano, da Colher para Semear, a tentar extrair sementes de uma beringela, rodeado de uma plateia de passantes que aguarda, suspensa, pelo desenlace da operação. A tentar, porque a beringela não apresenta ainda aquele tom amarelo dourado, sinal de que o fruto está bem maduro e as sementes no ponto para guardar para sementeiras futuras. Não sendo ideais, as condições existentes não o impedem de continuar com a demonstração e de obter as tão desejadas cápsulas que preservam a vida através do espaço e do tempo, muitas vezes em condições hostis, com todos os requisitos de sobrevivência no seu interior.
Em plena Feira de Setembro, em Moura, o José Mariano principia por descascar e cortar a beringela em bocados desiguais. As sementes estão à vista na polpa, mas não propriamente à mão de semear. Retirá-las uma a uma com as pontas dos dedos está longe de ser tarefa fácil. Por isso, nada melhor do que um truque para agilizar o processo e poupar na paciência. A solução tem tanto de magia como de simplicidade desarmante. Magia é a palavra certa, até porque é aqui que entra a varinha mágica. Os pedaços de beringela são deitados num liquidificador, com um pouco de água não tratada, dentro do qual trabalhará a varinha em baixa rotação para desfazer aos poucos a polpa sem danificar as sementes. Estas acabam por soltar-se e afundar-se na calda. Ao contrário, os restos de polpa ficam a flutuar à superfície, o que facilita a sua remoção. Em seguida, o líquido com as sementes é passado pelo coador, que retém apenas o que interessa. Deixadas a secar num prato até que não reste qualquer vestígio de humidade, as sementes estarão finalmente prontas para serem guardadas hermeticamente em frascos de vidro e etiquetadas com o nome da variedade e o ano da colheita.
Duas regras de ouro a reter para qualquer secagem que envolva frutos, como a beringela: apanhar sempre os frutos mais sãos situados ao nível inferior da planta e secar sempre as sementes à sombra. Tratando-se de uma variedade tradicional ou regional cuja pureza se pretende preservar, torna-se necessário proceder diferentemente se estamos em presença de uma planta cujo sistema de reprodução é por autopolinização e autofecundação ou se se trata de uma espécie de polinização cruzada, promovida pelos principais vectores: o vento e os insectos. No primeiro caso, a variabilidade é limitada, existindo baixo risco de cruzamento. Nesta categoria encontramos espécies como a alface, beldroega, ervilha, feijão, grão-de-bico ou tomate. No segundo caso, ao invés, a variabilidade é grande, existindo alto risco de cruzamento. Para espécies com estas características, é necessário estabelecer uma distância de isolamento entre variedades diferentes da mesma espécie, que pode variar entre 50 a 100 metros no caso da beringela e entre 3000 a 8000 metros no caso da beterraba, para se garantir uma elevada pureza varietal. Ainda para contrariar o desenvolvimento de híbridos, pode-se sempre recorrer a exemplos de polinização controlada pelo próprio homem: tapando todas as plantas da mesma variedade com rede mosquiteira, e desde que se introduzam no interior insectos polinizadores, ou ligando manualmente flores macho e flores fêmea e fechando de seguida a flor fêmea já fecundada com fita adesiva de fácil remoção para não condicionar ou impedir mesmo o crescimento do pedúnculo.
Em suma, e esta foi a mensagem principal deixada pelo José Mariano, compete a cada um, sobretudo quem faz agricultura e é utilizador de hortas, recorrendo a procedimentos simples, contribuir para a conservação das sementes de variedades tradicionais e da biodiversidade no seu todo, sementes essas que não estão patenteadas e que são portanto património de todos.
Falando do nosso contributo e respondendo a um desafio lançado pelo José Mariano, tornámo-nos em fiel guardião de um exemplar de uma variedade tradicional de tomate que o próprio nos confiou: o tomate-de-viagem. O compromisso firmado passa por extrair e guardar as respectivas sementes, lançá-las à terra no tempo próprio e partilhar parte da colheita com outros animados do mesmo espírito, de modo a que também esses procedam à conservação e multiplicação das sementes, de modo a que todos juntos consigamos garantir a continuidade da variedade.
Espaço de partilha por excelência, que melhor sítio do que a horta comunitária para lançar e consolidar esta ideia que diz respeito ao nosso futuro comum.
Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?
E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?
Que lhes dirás quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?
Eugénio de Andrade, Matéria solar, 1980)
Em plena Feira de Setembro, em Moura, o José Mariano principia por descascar e cortar a beringela em bocados desiguais. As sementes estão à vista na polpa, mas não propriamente à mão de semear. Retirá-las uma a uma com as pontas dos dedos está longe de ser tarefa fácil. Por isso, nada melhor do que um truque para agilizar o processo e poupar na paciência. A solução tem tanto de magia como de simplicidade desarmante. Magia é a palavra certa, até porque é aqui que entra a varinha mágica. Os pedaços de beringela são deitados num liquidificador, com um pouco de água não tratada, dentro do qual trabalhará a varinha em baixa rotação para desfazer aos poucos a polpa sem danificar as sementes. Estas acabam por soltar-se e afundar-se na calda. Ao contrário, os restos de polpa ficam a flutuar à superfície, o que facilita a sua remoção. Em seguida, o líquido com as sementes é passado pelo coador, que retém apenas o que interessa. Deixadas a secar num prato até que não reste qualquer vestígio de humidade, as sementes estarão finalmente prontas para serem guardadas hermeticamente em frascos de vidro e etiquetadas com o nome da variedade e o ano da colheita.
Duas regras de ouro a reter para qualquer secagem que envolva frutos, como a beringela: apanhar sempre os frutos mais sãos situados ao nível inferior da planta e secar sempre as sementes à sombra. Tratando-se de uma variedade tradicional ou regional cuja pureza se pretende preservar, torna-se necessário proceder diferentemente se estamos em presença de uma planta cujo sistema de reprodução é por autopolinização e autofecundação ou se se trata de uma espécie de polinização cruzada, promovida pelos principais vectores: o vento e os insectos. No primeiro caso, a variabilidade é limitada, existindo baixo risco de cruzamento. Nesta categoria encontramos espécies como a alface, beldroega, ervilha, feijão, grão-de-bico ou tomate. No segundo caso, ao invés, a variabilidade é grande, existindo alto risco de cruzamento. Para espécies com estas características, é necessário estabelecer uma distância de isolamento entre variedades diferentes da mesma espécie, que pode variar entre 50 a 100 metros no caso da beringela e entre 3000 a 8000 metros no caso da beterraba, para se garantir uma elevada pureza varietal. Ainda para contrariar o desenvolvimento de híbridos, pode-se sempre recorrer a exemplos de polinização controlada pelo próprio homem: tapando todas as plantas da mesma variedade com rede mosquiteira, e desde que se introduzam no interior insectos polinizadores, ou ligando manualmente flores macho e flores fêmea e fechando de seguida a flor fêmea já fecundada com fita adesiva de fácil remoção para não condicionar ou impedir mesmo o crescimento do pedúnculo.
Em suma, e esta foi a mensagem principal deixada pelo José Mariano, compete a cada um, sobretudo quem faz agricultura e é utilizador de hortas, recorrendo a procedimentos simples, contribuir para a conservação das sementes de variedades tradicionais e da biodiversidade no seu todo, sementes essas que não estão patenteadas e que são portanto património de todos.
Falando do nosso contributo e respondendo a um desafio lançado pelo José Mariano, tornámo-nos em fiel guardião de um exemplar de uma variedade tradicional de tomate que o próprio nos confiou: o tomate-de-viagem. O compromisso firmado passa por extrair e guardar as respectivas sementes, lançá-las à terra no tempo próprio e partilhar parte da colheita com outros animados do mesmo espírito, de modo a que também esses procedam à conservação e multiplicação das sementes, de modo a que todos juntos consigamos garantir a continuidade da variedade.
Espaço de partilha por excelência, que melhor sítio do que a horta comunitária para lançar e consolidar esta ideia que diz respeito ao nosso futuro comum.
Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?
E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?
Que lhes dirás quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?
Eugénio de Andrade, Matéria solar, 1980)
O vórtice das sementes de beringela
Exemplar de tomate-de-viagem
Um bago para consumir em cada paragem do périplo
Sementes do mesmo tomate, prontas para mais uma etapa da longa viagem da sobrevivência