A RUA DAS HORTAS EXISTE MESMO. FICA SITUADA EM MOURA, NO BAIRRO DO SETE E MEIO.
ESTE BLOGUE É O DIÁRIO DE BORDO DA HORTA COMUNITÁRIA AÍ EXISTENTE. INICIALMENTE ASSOCIADA A UM PROJECTO DE FORMAÇÃO PARA PÚBLICOS DESFAVORECIDOS, COMO ESPAÇO DA COMPONENTE TECNOLÓGICA DO CURSO, A HORTA ENCONTRA-SE AGORA NUMA SEGUNDA FASE. NESTE MOMENTO, ACOLHE ALGUNS DOS FORMANDOS QUE MOSTRARAM VONTADE EM PROSSEGUIR A ACTIVIDADE PARA A QUAL FORAM CAPACITADOS E ESTÁ ABERTA A OUTROS INTERESSADOS EM ACEDER AOS RESTANTES TALHÕES DEIXADOS LIVRES. UNS E OUTROS SÃO RESPONSÁVEIS PELA GESTÃO COMUNITÁRIA DA HORTA, MEDIANTE A OBSERVÂNCIA DE UM REGULAMENTO E CONTRATO DE UTILIZAÇÃO. ESTE PROJECTO CONTA COM A ORGANIZAÇÃO DA ADCMOURA EM PARCERIA COM A CÂMARA MUNICIPAL DE MOURA, NÚCLEO LOCAL DE INSERÇÃO DA SEGURANÇA SOCIAL, EQUIPA TÉCNICA DE ACOMPANHAMENTO FAMILIAR PROTOCOLO DE MOURA E CENTRO DE EMPREGO DE MOURA. TAL COMO ATÉ AQUI, ESTE É TAMBÉM O ESPAÇO PARA FALAR DE REGENERAÇÃO URBANA, AGRICULTURA BIOLÓGICA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E SOLIDÁRIO.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O dia dos prodígios

Prodígio é poder contar com este tempo aprazível para pôr a horta em dia. Do último domingo fica o olhar fortuito que se segue sobre as tarefas realizadas e em que se misturam momentos de pura contemplação. Outros prodígios, portanto.


Ao lado do existente, instalámos cinco novos compostores cedidos pelo projecto Re-Planta aos utilizadores da horta que assistiram, em Moura, no mês passado, à oficina sobre compostagem. Foram cumpridos, de um modo geral, os procedimentos usuais de instalação de compostores: arrumados a um canto da horta, junto à casa das ferramentas, ao abrigo dos ventos dominantes, em lugar acessível a todos os hortelãos, debaixo de árvores de folha caduca e colocados directamente sobre o solo para facilitar a entrada de organismos decompositores e a passagem dos líquidos que se vão gerando durante a biodegradação da matéria orgânica.


Ponto de situação do processo de decomposição no compostor instalado há mais tempo: desde que, em Março, montaram arraiais neste "reactor biológico", os microorganismos de serviço têm dado conta das camadas de resíduos verdes e castanhos, criando, com as suas excrescências, um produto que se aproxima cada vez mais do composto maduro, isto é, o alimento ideal para nutrir o solo e as plantas da nossa horta. Já não falta muito para dispormos deste "ouro negro". Segurando uma forquilha na vertical, aproveitámos para abrir canais de ventilação e com isso introduzir mais oxigénio na pilha. 



Enquanto prossegue a compostagem, uma pilha de estrume bem curtido, misto de palha e esquírolas de excremento de cavalo, vai satisfazendo as necessidades de fertilizar e cobrir o solo de alguns talhões nesta altura do ano.  



Preparação de cinco talhões de forma muito pouco intrusiva: nada de enxadas e de cavas fundas para manter intacta a ordem das camadas de terra e poupar a fauna auxiliadora que habita no seu interior. Apenas uma monda manual para controlar a grama e uma leve passagem com ancinho no final para apagar os vestígios de pisoteio.   
Aos poucos, temos conseguido reaver o que, no início, não passavam de solos compactados e erodidos, convertendo-os em oásis de vida. 



Agora que os tons das folhas da figueira assumem declinações que vão do amarelo pálido ao castanho escuro e uma de cada vez caem ao chão, sobretudo nos talhões que se encontram sob o raio da acção da copa da árvore, está criado o pasto perfeito para as nossas minhocas e outras micro-criaturas se recrearem a seu bel-prazer. A sua acção é fundamental para transformar a matéria orgânica disponível em húmus e nutrientes assimiláveis pelas plantas. Significa, além disso, um contributo assinalável para a melhoria da estrutura do solo, para o aumento da drenagem dos mais pesados e da retenção de água dos mais leves, para a limitação da germinação de ervas espontâneas e ainda para a diminuição do impacto da radiação solar directa sobre o solo, evitando-se assim a erosão. 


Ainda a propósito de minhocas, temo-las amiúde na horta e bem cevadas, o que é um excelente medidor do trabalho em curso de regeneração do solo. Dá para perceber que, por aqui, minhocas e outros seres rastejantes têm estatuto de protecção. 



Como por exemplo esta taranta atarantada, que mete tracção às oito patas mal focamos a objectiva. Instinto de sobrevivência posto à prova, quando leva o dorso bem albardado de criação.



Mais acima, no cimo dos postes da vedação, há sempre uma garbosa louva-a-deus, circunvagando o olhar ou palhetando as asas em desalinho, que procura candidatos à medida do seu apetite. 



Aproveitámos a lua em quarto crescente para lançar à terra estas sementes de ervilha, produzidas em modo biológico pela De Bolster, seguindo o princípio dos antigos que diz que é nesta fase da lua que deve ser feita a sementeira das plantas aéreas (altura em que a seiva circula com maior fluidez no caule, nos ramos e nas folhas). Já no caso das plantas subterrâneas (cenouras, nabos, cebolas, alhos, batatas, etc), o cultivo deve ter lugar durante a lua minguante, quando a seiva desce às raízes.



Assim vai o fugaz (?) Verão de São Martinho: os pimenteiros continuam a produzir, e muito, como se estivéssemos em pleno Verão. "Mejor que pimienta", como escreveu Colombo.


Falar de pimenta é lembrar as malaguetas que também prosperam a olhos vistos na horta. Colhemos as bagas mais maduras, logo as mais picantes, para utilizar indiferentemente no tempero de molhos, em marinadas e pratos condimentados. E reservámos algumas como ingrediente principal de um chutney caseiro onde não faltarão o alho, azeite, louro, sal e uns pés de alecrim.


A propósito de alecrim, também colhemos algumas pontas tenras para fazer infusões, conhecidas que são as propriedades tonificantes e estimulantes da planta. Comido moderadamente em cru é um excelente fortificante para o cérebro e a memória. Não por acaso os estudantes da Grécia Antiga e os legionários romanos tinham por hábito trazer ramos de alecrim atrás das orelhas.  



O tempo ameno que se faz sentir ainda vai pedindo uma bebida refrescante. Entre as melhores que se podem fazer a partir das plantas da horta está a infusão gelada de hortelã-pimenta, cujo modo de preparação segue estes passos simples: 1) maceração das folhas num pilão; 2) infusão das folhas maceradas num bule; 3) coar o líquido; 4) deixar arrefecer; 5) colocar no frigorífico e servir bem frio. Como sugestão: adicionar uma colher de sopa com açucar mascavado. 



Salvas há muitas. Esta é a salva-ananás da nossa horta e apresenta-se por esta altura bem frondosa, com as suas flores lilazes e... comestíveis! Imagine-se uma salada com esta cor e a saber a ananás. Melhor do que isso, só provando.  


E como não há três plantas odorosas sem quatro, chega a vez de falar da lúcia-lima. O que lhe damos em trato e nutrimento, que inclui conversa diária de homem para planta, retribui-nos ela, a lúcia-lima, em infusões alimonadas que consolam a alma e  o corpo. 


O outono representa o auge das romãzeiras. Inteiriços ou arreganhados, ninguém pode ficar indiferente aos seus belos frutos. 



E se não bastasse, os lodãos-bastardos, carregados de ginjinhas maduras, só servem para renovar o apelo pela recolecção. 



Com estas dicas, não é difícil adivinhar em que consistiu o lanche frugal a meio da tarde: rosários doces de ginginhas-del-rei e gengivas vermelhas e abertas de romã a sorrirem para nós. 


Falta falar da última das vitualhas. Como a natureza na horta não se cansa de ser generosa, acabámos a jornada a ripar uns quantos ramos da nossa oliveira híbrida. Um maná de azeitonas carrasquenhas e cordovis que ganharão estatuto de conduto depois de curtidas em salmoura tradicional. 



Depois seguimos o exemplo das ovelhas do vizinho Francisco, gozando a calma do final de dia, pois na horta nem tudo são couves e alfaces.



Há também (e sempre) lugar para a contemplação e para um naco de prosa poética.

A oliveira de Atena na Acrópole 
"Quanto à oliveira, nada mais têm a dizer, senão que é o testemunho da luta da deusa pela posse da região. Contam ainda que esta oliveira foi queimada, quando os Medos incendiaram a cidade dos Atenienses, mas, no mesmo dia em que ardeu, produziu um rebento de dois côvados."

Pausânias, Descrição da Grécia, I, 26, 6 (trad. Maria Helena da Rocha Pereira)