Uma coisa boa do Verão? A figueira da horta carregada de figos reis de Olivença. De Junho a Setembro, desfaz-se ela em frutos arreganhados, com pérolas de mel, e desfazemo-nos nós, compulsivos apreciadores, em delíquios de prazer. A abrir a temporada, os figos lampos, grados mas esparsos, para pelar e comer frescos. No termo da estação, os figos vindimos, miúdos e em cachos, mais indicados para secar numa esteira de canas e guardar com essências de funcho.
Por isso mesmo, com Agosto à porta, há que aproveitar os últimos lampos, sem deixar de saborear a magia das manhãs frescas passadas entre as ramagens da figueira.
E quando já não se vai lá em bicos de pés, resta a cana aberta em forma de roca para alcançar os figos mais distantes. A mesma cana que pode servir para esgrimir com os atrevidos papa-figos, apesar de pouco adiantar: - Viste lo abade? - Lá o vi, lá o vi. - Com'ia vestido? - Ia com'a mi. - Comeste-los figos? - Pois comi, comi!
Em breve, o tempo dos figos passará o testemunho ao tempo das uvas. Os papa-figos rumarão para latitudes mais a sul e nós iniciaremos também uma longa travessia a suspirar por essas manhãs luminosas. Até que venha outra vez Junho apaziguar a fome de figos frescos.
"De repente uma das irmãs do cónego perguntou-me em voz trémula:
Por isso mesmo, com Agosto à porta, há que aproveitar os últimos lampos, sem deixar de saborear a magia das manhãs frescas passadas entre as ramagens da figueira.
E quando já não se vai lá em bicos de pés, resta a cana aberta em forma de roca para alcançar os figos mais distantes. A mesma cana que pode servir para esgrimir com os atrevidos papa-figos, apesar de pouco adiantar: - Viste lo abade? - Lá o vi, lá o vi. - Com'ia vestido? - Ia com'a mi. - Comeste-los figos? - Pois comi, comi!
Em breve, o tempo dos figos passará o testemunho ao tempo das uvas. Os papa-figos rumarão para latitudes mais a sul e nós iniciaremos também uma longa travessia a suspirar por essas manhãs luminosas. Até que venha outra vez Junho apaziguar a fome de figos frescos.
"De repente uma das irmãs do cónego perguntou-me em voz trémula:
- Gosta de figos lampos?
- Sim, minha senhora, muitíssimo.
- Por causa deles o fizemos esperar - ajuntou outra.
- Nós é que os fomos apanhar ao quintal com as nossas lanternas - observou a terceira.
E cada uma por seu turno:
- Apanhados de noite são mais frescos.
- E mais gostosos.
- Os figos lampos!
- Os figos lampos!
- Os figos lampos!
Cada uma delas repetiu, soluçando:
- Os figos... lampos... - e depois, à uma, em desatado choro:
- O que a nossa mãezinha gostava deles!...
Aqui interveio Monsenhor, lacrimoso também:
- A nossa boa mãezinha... já... lá...está... já morreu!
- Não morreu... não morreu... - protestaram elas com ruidoso pranto.
- Morreu e já... não... come... figos... lampos...
- Ai! não diga isso, mano, não diga isso...
- Nós já vamos ver... se morreu...
- Vamos lá...
- Vamos lá...
E as três senhoras levantaram-se e, em gritos feridos, sumiram-se nas trevas do corredor, deixando-me mudo de verdadeiro espanto.
Mas eu sentia fome e como o cónego recaísse em modorra - sem dar outro acordo de si além do febril movimento dos dedos que enfiava e soltava dos buracos da cadeira - pensei que ao menos havia de provar os tais figos lampos, causadores de tão excruciantes recordações.
Apalpei no montão, escolhi aquele que me pareceu mais maduro, pelei-o e quando o levava à boca, para que Monsenhor não reparasse tanto na minha sem-cerimónia, digo-lhe:
- E a mãe de V.Exa. morreu de muita idade?
- Morreu de... uma cólica... a pobrezinha...
- Há quantos anos?
- Morreu hoje... hoje... às duas da tarde...
- Ó demónio! - soltei eu involuntariamente, deixando cair o figo no chão. - E já se enterrou?
- Não senhor... Está lá dentro com as visitas... Quer o meu... amigo vê-la... e rezar-lhe um padre-nosso...e uma... avé-maria por alma?...
- Decerto... E logo sairei em busca de outra pousada, pois compreendo muito bem como deve ser importuna a V.Exas. a minha estada aqui...".
Manuel Teixeira Gomes, "Gente singular" in Gente singular (livro de contos), publicado originalmente em 1909 (3ª edição, Portugália Editora, 1959). Manuel Teixeira Gomes (1860-1941), natural de Portimão, trocou um curso de Medicina quase concluído pelas viagens pelo mundo, do Norte da Europa a África, do Mediterrâneo à Ásia, enquanto representante da empresa de exportação da família, que haveriam de reflectir-se numa obra literária inovadora e cheia de ironia. Antes de se fixar na Argélia, onde acabaria por morrer, foi Presidente da República entre 1923 e 1925.