Entrou na horta no ano passado, por estes dias. Começou por cuidar do seu talhão e em pouco tempo já cuidava de mais dois ou três, de utilizadores que lhe confiavam a rega ou pediam outro tipo de apoio. Preferia ter trabalho acrescido, a ver as parcelas com ervas e descuidadas. Apesar de solícito, fazia-lhe confusão os que não tinham vagar para passar todos os dias pela horta, desculpando-se com o emprego e as obrigações familiares. Durante o último Verão, como um ritual, todos os dias antes do nascer do sol, saía da sua casa na Mouraria para regar a horta. E sempre que sobrava tempo, para cuidar dos seus criadeiros, modelar regos perfeitos, colher um molho de beldroegas para a sopa ou meia dúzia de tomates para a salada. A meio da manhã tomava o pequeno almoço debaixo da figueira, rendido aos figos lampos que afiançava serem "reis de Olivença". Em Setembro, destinara parte dos figos vindimos à secagem, feita em esteiras de pano estendidas no chão. Gestos e saberes que não tinham segredos para ele e que constituíam, sem o suspeitar, parte de uma herança confiada a sucessivas gerações por um distante antepassado mudéjar, que vivera há muito no seu bairro e tivera uma horta semelhante na várzea do Brenhas. Aproveitava depois a tarde e a sombra da figueira para dormitar. E para engendrar novos projectos para a horta. Como o engenhoso sistema de rega, que concretizou com recurso a condutas, subcondutas e uniões, mais o detalhe da lei da gravidade. Outros projectos, como o reforço da vedação da horta, já não verão a luz do dia com ele por perto, de mangas arregaçadas, boina na cabeça e cheio de energia. Essa mesma energia que contagiava e que nunca deixou prever o desfecho vertiginoso que se seguiu. Neste Inverno, ainda semeou ervilhas e favas sozinho. No início da Primavera, já bastante debilitado, pediu que o ajudassem a cavar a terra para semear batatas. De repente, a enxada, com que sempre lutou, passou a pesar toneladas. Resistiu na horta o mais que pôde, por último sentado na sua cadeira amarela, ainda e sempre burilando planos. Mesmo cercado pela doença, a horta nunca deixou de lhe preencher os dias e as preocupações. Tanto assim que, já moribundo, na cama do hospital, só perguntava pelas suas batatas, que não pôde ver viçosas e floridas. O senhor António deixou-nos ontem e desceu hoje à terra, sempre a mesma terra, como um prolongamento da sua vida, a sua própria vida.
"À noite, quando se ouvia respirações pesadas e gritos nos corredores, as enfermeiras entravam no quarto para lhe pegarem nos braços e a levarem para a cama. Em camisa de dormir, despenteada, caminhava pelo quarto e, na escuridão, distinguia a horta. Quando as enfermeiras entravam, dizia: Ó mulher, não me pise as favas, então querem lá ver, anda uma pessoa com o trabalho de dispô-las, anda uma pessoa a gastar água para regá-las e depois vem esta mulher e pisa tudo. Numa noite, encontraram-na agarrada à testa depois de ter ido de encontro à parede. Ó António, esta macieira é um perigo; se me calha a acertar numa vista ficava para aí cega. Noutra noite, encontraram-na ajoelhada no chão do quarto, a passar as mãos pelo chão do quarto, a passar as mãos pelo chão como se juntasse um monte de terra, dizia: vais ver, há-de nascer aqui uma bela figueira. Quando as enfermeiras a deitavam na cama, tinham de ficar a segurá-la durante alguns minutos porque, se não o fizessem, ela voltava a levantar-se. Durante esse tempo, as enfermeiras seguravam-lhe a roupa da cama com as duas mãos sobre o peito e ficavam a sibilar-lhe um assobio leve: shh, shh. Então, ela acalmava-se e murmurava: temos aqui uma bela horta. Ou, com impaciência, murmurava: o raio dos pássaros. Murmurava: este ano vamos encher o sótão de batatas."
"Demoraram muito tempo para chegar à horta porque Ana e o anjo queriam mostrar a todas as árvores que sentiam falta de vê-las todos os dias. Ana não tocou na terra. Ficou numa ponta da horta apenas a olhá-la e a ver tudo aquilo que recordava. Pensava: a sua vida. Perante aquela terra, pensava que a sua vida era alguma coisa que podia ser agarrada com uma mão. A sua vida não existira nem antes de ter nascido, nem existiria depois de morrer. Perante aquela terra, pensava: a sua vida. Talvez aquela terra fosse a palma da mão que segurava a sua vida.Os regos que tinha cavado começavam a perder a forma. Havia ervas desconhecidas cobrindo toda a superfície da horta. Ana ficou sentada numa pedra. O anjo aproximou-se para lhe tocar nos ombros. As mãos da criança de luz tocaram os ombros da velha durante tempo. Quando Ana se levantou e caminhou para o monte, não olhou para trás. Acreditou que nunca mais voltaria à horta. Tinha mais de oitenta anos e essa é uma idade de decisões para toda a vida."
Excertos do livro de contos Cal, de José Luís Peixoto.