A RUA DAS HORTAS EXISTE MESMO. FICA SITUADA EM MOURA, NO BAIRRO DO SETE E MEIO.
ESTE BLOGUE É O DIÁRIO DE BORDO DA HORTA COMUNITÁRIA AÍ EXISTENTE. INICIALMENTE ASSOCIADA A UM PROJECTO DE FORMAÇÃO PARA PÚBLICOS DESFAVORECIDOS, COMO ESPAÇO DA COMPONENTE TECNOLÓGICA DO CURSO, A HORTA ENCONTRA-SE AGORA NUMA SEGUNDA FASE. NESTE MOMENTO, ACOLHE ALGUNS DOS FORMANDOS QUE MOSTRARAM VONTADE EM PROSSEGUIR A ACTIVIDADE PARA A QUAL FORAM CAPACITADOS E ESTÁ ABERTA A OUTROS INTERESSADOS EM ACEDER AOS RESTANTES TALHÕES DEIXADOS LIVRES. UNS E OUTROS SÃO RESPONSÁVEIS PELA GESTÃO COMUNITÁRIA DA HORTA, MEDIANTE A OBSERVÂNCIA DE UM REGULAMENTO E CONTRATO DE UTILIZAÇÃO. ESTE PROJECTO CONTA COM A ORGANIZAÇÃO DA ADCMOURA EM PARCERIA COM A CÂMARA MUNICIPAL DE MOURA, NÚCLEO LOCAL DE INSERÇÃO DA SEGURANÇA SOCIAL, EQUIPA TÉCNICA DE ACOMPANHAMENTO FAMILIAR PROTOCOLO DE MOURA E CENTRO DE EMPREGO DE MOURA. TAL COMO ATÉ AQUI, ESTE É TAMBÉM O ESPAÇO PARA FALAR DE REGENERAÇÃO URBANA, AGRICULTURA BIOLÓGICA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E SOLIDÁRIO.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Hortas, compostagem e Goethe

Cascas de tubérculos e frutos, restos de hortaliça e legumes, borras de café e saquetas de chá, cascas de ovos e folhas secas de arbustos contam-se entre os resíduos orgânicos depositados no nosso ponto de recolha doméstico, à espera de serem compostados. Representam diariamente qualquer coisa como meio quilo e metade do lixo indiferenciado produzido por uma família de três elementos. Ao fim de uma semana a seleccionar e armazenar, são cerca de quatro quilos de resíduos domésticos que desviamos, com vantagens diversas, dos sobrelotados aterros sanitários da região para os compostores instalados na horta, onde são transformados e de seguida incorporados, sob a forma de adubo gourmet, no ciclo produtivo.
Graças à horta e à compostagem, o que antes era lixo ganha agora estatuto de matéria-prima. Chama-se a isto saber utilizar os recursos com eficiência e sensatez, partindo do princípio de que tudo foi feito, a montante, para reduzir o seu desperdício. E nós garantimos que sim.
Vale a pena determo-nos nesta combinação frutuosa horta-compostagem: evita o uso de fertilizantes químicos e outros insumos não-naturais, contribui para a redução do custo de gestão dos resíduos domésticos e gera impactos positivos no meio ambiente, na nossa saúde e na nossa carteira.
Além disso, com estes simples gestos, estamos a retomar o curso duma longa história de que nos afastámos, enquanto comunidade, nas últimas décadas, a qual remonta às origens da agricultura neste território e se sedimenta num valioso património de práticas sustentáveis, de que o aproveitamento de estrumes de origem animal e de desperdícios das cozinhas e colheitas sempre fez parte.
Em conclusão, produção local de alimentos e tratamento local de resíduos foram sempre funções inerentes às hortas tradicionais, as de Moura, em particular, e as do mundo mediterrânico, em geral, mas que agora, em tempos de transição, podem e devem ser consideradas com renovado propósito.



E por falar em (a) propósito, reza assim o trecho seguinte, escrito em Nápoles no dia 28 de Maio de 1787: 

«As redondezas de Nápoles são uma horta pegada, e dá gosto ver a quantidade de legumes que todos os dias são trazidos para a cidade, e como as pessoas se ocupam a levar de volta para os campos os restos, deitados fora pelos cozinheiros, para acelerar o ciclo da vegetação. Com um tal consumo de legumes, os talos e as folhas de couve-flor, brócolos, alcachofras, couves, alface, alho, constituem uma grande parte do lixo napolitano; e eles procuram fazer o que podem por isso. O burro traz no lombo dois grandes cestos flexíveis que não se limitam a encher, completam-nos ainda com um monte em cada um, feito de um jeito muito especial. Não há horta que floresça sem um burro destes. Um criado, um rapaz, por vezes o próprio patrão, vêm todos os dias, às vezes mais que uma vez, à cidade, que é para eles uma mina a qualquer hora que cheguem. É fácil de imaginar como estes homens andam atrás do estrume de cavalos e mulas. Não saem das ruas quando cai a noite, e os ricos, que depois da meia-noite saem da ópera, não pensam provavelmente que antes do nascer do dia um homem diligente terá recolhido os vestígios dos seus cavalos. Asseguram-me que algumas destas pessoas se juntam, compram um burro e arrendam a um proprietário um pedaço de terra batida, e, com o seu trabalho e o clima favorável, em que o ciclo da vegetação nunca se interrompe, em pouco tempo conseguem alargar significativamente o seu negócio.»  (Johann Wolfgang von Goethe, Viagem a Itália (Italienische Reise, 1786-1788), tradução, prefácio e notas de João Barrento, Relógio d'Água Editores, 2001, pp.406-407.

Como escreveu Orlando Ribeiro, a obra epistolar/diarística Viagem a Itália, do romântico Johann Goethe (sim, esse mesmo, o autor de Fausto e Werther), registando as suas deambulações, entre 1786 e 1788, através de uma Itália então dividida em reinos, «é o primeiro encontro da cultura germânica, na época da sua eclosão, com o ambiente e a tradição do Mediterrâneo». Encontro marcado por um permanente deslumbramento, quer diante do mundo clássico da história e da arte, quer perante o mundo novo da natureza e do património rural mediterrânicos, com uma atenção particular dada às paisagens e aos aspectos pitorescos das práticas agrícolas. Apesar dos anos passados, continua a ser uma obra relevante da vasta bibliografia acerca do Mediterrâneo, sobretudo para o conhecimento da idiossincrasia transalpina. 


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